Travessia


Noite fria, sem lua. Não ousava fitar as estrelas - tinha medo de que uma vertigem o fizesse tombar no mar e ser engolido pela água escura. O cheiro de urina e vômito lhe dava náusea. Queria que essa noite acabasse, que o vento estancasse. Doíam-lhe os ossos. Queria chegar. Não era homem do mar. Suas pernas, acostumadas à geografia da cidade, formigavam. No barco apertado, ninguém mais tinha ânimo para conversar. Já quase não havia comida, só água. Água para beber. E a água do mar, tanto mar.

Há apenas alguns dias, a travessia era o sonho. Deixar para trás a África, chegar às Canárias. De lá, ganhar o continente, a Europa, onde poderia aspirar a um futuro. Teria um trabalho, casa, comida, como qualquer pessoa decente. Mais tarde, talvez pudesse trazer a mãe. A lembrança da mãe o aquecia - ela lhe entregara sem perguntas o dinheiro para pagar a viagem. O dono do barco pedira 800 euros. Não regateara, eram muitos os que estavam dispostos a pagar o preço. 800 euros para viajar naquela piroga apinhada, espremido entre outros clandestinos. 800 euros. As economias de toda uma vida.

A princípio, temia o mar. Não sabia nadar. Os companheiros lhe contavam histórias de naufrágios, de ondas gigantes ao largo da costa da Mauritânia. De afogados em outras travessias. Agora tinha medo é de morrer de fome. As tais ondas gigantes não vieram perturbar a pequena embarcação, mas esta parecia vagar a esmo em meio a tanto mar.

Manhã. A manhã lhe devolvia a esperança. Vencida a escuridão da noite, saboreava cada manhã, quando ainda parecia longínquo o calor cortante da tarde. Sob a luz tímida, o mar adquiria uma delicada coloração azul e já não parecia querer tragá-lo. A manhã o fazia acreditar que haveria de terminar esse vagar sem fim, a manhã o fazia simplesmente acreditar. A brisa leve lhe acariciava a pele e levava para longe o cheiro de suor, de mijo e vômito dos companheiros. O seu próprio cheiro de suor e excrementos. A manhã o fazia pensar na mãe, a manhã lhe sorria o sorriso da mãe.

Sede. Sal. O sol lhe queimava o rosto. O calor o sufocava, nem uma leve aragem que o pudesse aliviar. Os companheiros se acotovelavam no barco estreito. Já não tinha fome. A sede é que o torturava. A água para beber era pouca. Ao contrário da água do mar, tanto mar... O barqueiro parecia procurar a terra. Céu e mar apenas se distinguiam pela linha reta de um horizonte sem recortes. Terra. Onde estariam as Canárias? Quando haveriam, enfim, de lá aportar? Queria esticar a pernas, mexer-se, sair daquele confinamento, daquele marasmo, sair daquele mar sem fim onde parecia perder-se de si mesmo...

O dono do barco fora claro. Ninguém viajaria com passaporte. Se os apanhassem, melhor que os apanhassem sem documentos, que não lhes adivinhassem a origem. Se não soubessem de onde vinham, não teriam como mandá-los de volta. Fazer a travessia significava não apenas deixar a pátria, mas renegá-la.

Na África, ele só tinha presente. Despegara-se do passado. Mal conhecia o pai, a mãe apenas uma de tantas mulheres daquele homem que há muito esquecera. Também se desprendera do futuro. Criara-se nas ruas. A mãe costurava dia e noite para sustentá-lo e às irmãs. Ele deixara a escola para ajudar nas despesas, vendendo bugigangas para os turistas. Mal dava para pagar a comida. Mas como renegar a África? A mãe tinha a cara da África, a sua cor profunda, a sua pele quente, lisa, luzidia. Tentava não pensar. A travessia era sem volta.

O sol, redondo, enorme, caía no mar. Fechava os olhos para que a luz vermelha não o cegasse. De repente, um ruído de aves marinhas interrompeu a modorra daquela tarde causticante. Terra. Aproximavam-se da terra. Chegavam, enfim, às Canárias. Terminara a travessia.

Desembarcaram na praia ao cair da noite, para não serem vistos. Aí era cada um por si. Saltou do barco e correu como um louco, o coração batendo violentamente, ameaçando saltar-lhe pela boca. Corria para a terra. Corria para o futuro. No escuro, trombava nas pedras, caía, levantava-se, tornava a correr. Só parou ao aproximar-se de um amontoado de casebres. Provavelmente um povoado de pescadores. Esperou que todas as luzes se apagassem e deitou-se junto ao muro de um quintal vazio. A noite já ia alta e poderia dormir um pouco. A essa hora, ninguém iria incomodá-lo.

De manhãzinha, antes que o povoado acordasse, esgueirou-se até a estrada. Não poderia seguir por ela, corria o risco de ser apanhado. Tentou seguir seu traçado pelo mato ralo. Melhor tentar chegar a uma cidade, deveria haver uma nas cercanias. Seria mais fácil passar despercebido no burburinho da cidade, ali no povoado logo seria notado. Ainda mais maltrapilho e sujo daquele jeito. Meu Deus! Que língua se falava nas Canárias? Não pensara nisso antes. Como faria para se comunicar? Tentava não pensar, apenas seguir em frente. Não pensar na fome, na sede, no medo de ser preso. Caminhava rápido e sem olhar para os lados.

Não demorou muito, foram aparecendo casas esparsas, ruas de terra. Mais adiante divisou os contornos de um mercado, pululando de gente. Barracas de verduras, de frutas e peixe amontoavam-se desordenadamente. Carneiros comiam jornal e papelão molhado. Alguns eram degolados, esfolados e dependurados em ganchos, seu sangue misturando-se à areia amarelada. Mulheres banhavam crianças em pequenas tinas e lhes trançavam o cabelo espesso com tirinhas de elástico colorido. A roupa lavada balançava nos varais ao ar livre. Outras mulheres passavam carregando bandejas redondas repletas de hortelã fresca e amendoim. As Canárias, afinal, se pareciam com sua própria terra, cheiravam como sua terra, até a música da língua lhe era familiar...

A verdade atingiu-o como um soco no estômago. Não estava nas Canárias! Jamais saíra de seu país! Ele e seus companheiros haviam navegado sem orientação e retornado praticamente ao ponto de partida! Por isso não depararam as ondas gigantes; o mar sempre plano e monótono subtraíra-lhes o senso de direção.

Esgotado, zonzo, desabou. Quando voltou a si, estranhos o olhavam com curiosidade. Não queria abrir os olhos. Queria ficar ali deitado para sempre, afundar na terra, desaparecer. Havia enfrentado o medo, o escuro, a fome e a sede, mas a vergonha o derrotava. Era um imbecil! Como pudera deixar-se enganar por um canalha sem escrúpulos, que jamais pretendera de fato levá-lo às Canárias? O que diria à mãe, como explicar-lhe que gastara todo o seu dinheiro nessa aventura estúpida? O que dizer aos amigos? Seria motivo de chacota, outros clandestinos ririam de sua história em outras travessias...

Dias depois, retornou a casa. Na soleira da porta, ainda hesitava. Como enfrentar a mãe? Quando ela o abraçou com os olhos molhados, ele teve a certeza de que ela sempre o perdoaria. E de que ele, custasse o que custasse, tentaria de novo a travessia....