Depois da Chuva



O estrondo do avião que cruzava o céu de Lagos no meio da noite despertou Nkem de seu torpor com um sobressalto. Trêmula, ela levantou-se devagar, sem poder reprimir a vontade de urinar. No vaso do banheiro, viu que sangue misturava-se à urina. Sua cabeça latejava. Todo o seu corpo doía. Manchas roxas cobriam-lhe os braços, o pescoço, as pernas. Tentou em vão evitar o espelho quando este devolveu-lhe a imagem de uma mulher desgrenhada, o rosto inchado, o supercílio com um longo corte sobre o qual o sangue já estancara e desenhava uma feia linha escura.

Na cozinha, cacos de argila e terra esparramavam-se por toda a parte, pedaços de pequenos vasos de flores que ela cultivava junto à janela. As flores jaziam  pisoteadas e murchas.
Ainda atordoada, Nkem varreu o chão e lavou-o metodicamente. Depois lavou-se metodicamente a si própria e deixou que a água fria do chuveiro escorresse pelo seu corpo e o limpasse de todo vestígio daquele homem e daquela noite. Secou-se, vestiu-se e foi ao quarto da filha. Onyinye dormia encolhida junto à parede, agarrada a um travesseiro. Ele não a tocara.

O homem não era um estranho. Nkem já o vira muitas vezes percorrendo as ruas do bairro em uma bicicleta amarela, ou brincando de bola com dois garotos risonhos no quintal de uma casa próxima à sua. Foi com assombro que reconheceu este homem, aparentemente normal, no agressor que lhe apertava a garganta com violência e lhe invadia a casa quando ela voltava do mercado no final da tarde, equilibrando com dificuldade pesados sacos de frutas e de legumes para destrancar a porta da cozinha.

Ao amanhecer, Nkem reuniu todas as suas forças para aprumar-se e conferir algo de normalidade e rotina ao dia. Fritou algumas fatias de banana-da-terra, preparou o fufu para o desjejum, penteou-se, maquiou-se com cuidado para disfarçar como podia o rosto ferido e só então acordou Onyinye.  As duas comeram em silêncio e caminharam sem fitar-se  pelas ruas apinhadas até a escola.

Silêncio. Desde aquela noite, o silêncio passou a cercar Nkem como uma sombra. O silêncio ensimesmado da filha. O silêncio dos vizinhos, cúmplices daquele homem cuja violência fingiam não perceber ou não ousavam denunciar. O seu próprio silêncio, carregado de impotência e de vergonha. O silêncio passou também a povoar suas noites, quando evitava o sono para não sonhar com flores pisoteadas e com aquele homem mexendo-se brutalmente dentro dela.
Para preencher o silêncio, Nkem evocava um a um os ruídos ainda tão familiares de sua aldeia - a zoada de pássaros que anunciava a chegada das manhãs, a algazarra da meninada ao banhar-se no rio nos dias quentes, as risadas das mulheres que trançavam os cabelos umas das outras e os untavam com óleo de palma e de carité. Pensava nas cantigas entoadas a cada agosto para agradecer a nova colheita de inhames, as famílias partilhando a comida e o vinho.

Umueze. Nkem mal podia acreditar que já se iam tantos anos desde que partira de Umueze. A aldeia ficava a sudeste de Lagos, nas terras ibo devastadas pela miséria após a guerra civil que as seccionara por alguns anos do restante do país.  Ela era a mais velha de seis meninas. A mãe morrera cedo, levada por uma doença que ninguém chegou a diagnosticar. O pai, sem filhos homens, depositara nela toda a esperança de um futuro longe de Umueze. Queria que ela estudasse, que tivesse um diploma, que não tivesse que curvar-se ano após ano sobre os campos de Umueze, o coração numa prece contínua para que as chuvas viessem na medida certa e os enxames de gafanhotos não arruinassem as colheitas.   

Quieta e observadora, Nkem rapidamente aprendera a ler e a escrever com missionários ingleses que se haviam instalado não muito longe da aldeia.  Aos onze anos, fora morar em Lagos com uma tia distante, cujo marido conseguira trabalho em uma empresa de petróleo. Mais tarde, mudou-se para o dormitório da Universidade.  O diploma, entretanto, nunca viria. Nkem teve de deixar o curso de Direito quando, o ventre redondo já saliente sob a saia folgada, fora abandonada pelo pai de sua filha.

Ele era um rapaz extrovertido e popular, capitão do time de basquete da Universidade e estudante medíocre. Nkem logo se sentira atraída por ele, por uma certa leveza que ele imprimia a tudo, tão distinta da rigidez dela própria. Mas ele não queria a criança, nem qualquer compromisso que lhe complicasse a vida.

Nkem tinha consciência do que representava levar a gravidez a termo - resignar-se a aceitar o emprego modesto que lhe conseguira a sua parente, deixar para trás o diploma, Umueze, o pai. Mas desde que sentiu pela primeira vez a filha mover-se em suas entranhas foi inundada por um amor sem limites e soube que não poderia abrir mão dela. Quando nasceu a menina, chamou-a Onyinye, que em ibo quer dizer presente ou dádiva.  

Nkem jamais regressara a Umueze. Não se sentia realmente em casa em Lagos. De natureza reservada, não se confiava a ninguém e vivia solitária em meio àquela multidão. A cidade a oprimia. Ansiava caminhar descalça sobre a terra de Umueze, banhar-se nas águas do rio, sentir no rosto a chuva fininha que abençoava as colheitas, deitar-se à sombra das acácias e escutar o vento. Queria rever as irmãs, contar-lhes histórias da cidade e ouvir delas histórias que se tinham passado em Umueze desde a sua partida. Mas não podia encarar o pai, não tinha como explicar-lhe que não pudera cumprir o destino que ele lhe traçara.

Agora que o destino que acreditava ter construído em Lagos parecia despedaçar-se, não conseguia encarar a filha.  

Onyinye, antes tão falante e vivaz, emudecera. Ia à escola, fazia os deveres, mas não brincava mais com as outras crianças. Esgueirava-se todas as tardes para um terreno baldio da vizinhança. Antes que anoitecesse, regressava a casa, jantava sem tirar os olhos da comida e refugiava-se em seu quarto.

Nkem se encerrava em si mesma. Não conseguia concentrar-se no trabalho, números e letras embaralhavam-se e confundiam-na. Emagrecia, a pele colada aos ossos, o corpo sem formas. Perdia o vigor, o rosto tornava-se opaco. Fugia dos olhares dos vizinhos e de desconhecidos, como se todos pudessem adivinhar o que se passara com ela. Muitas vezes, ao voltar do trabalho, tinha a impressão de ver uma bicicleta amarela e aquele homem à sua espreita e se trancava no quarto, o coração pulando no peito.

Nkem amava profundamente a filha e não queria que se criasse entre elas um muro de incomunicabilidade semelhante ao que um dia a afastara do pai, mas sentia-se paralisada e não sabia como chegar até Onyinye. Como explicar-lhe o que ela própria não podia compreender? Como confortá-la se ela se via agora assombrada pelo medo e pela angústia? Como vigiar-lhe o sono nessa noite de tormenta que teimava em não dissipar-se?

Passavam-se as semanas e Nkem se apartava cada vez mais da filha, prisioneira de seu pesadelo.  Até que num domingo de sol e céu límpido, desses que só se formam depois que uma  tempestade lava a terra e leva para longe a poeira que se acumula durante a seca, Onyinye tomou com firmeza a mão de Nkem e conduziu-a até o terreno baldio onde passava as tardes. Num cantinho apertado entre restos de comida, latas enferrujadas e um amontoado de garrafas plásticas, Nkem distinguiu um  pequeno jardim, onde começavam a florescer canteiros de miosótis e violetas.   

 Ao contemplar o delicado jardim azul, Nkem percebeu desatar-se o nó que trazia preso na garganta. Agachada ao pé dos canteiros, chorou convulsivamente e sem controle, dissolvendo pouco a pouco em soluços e em lágrimas toda aridez e solidão que experimentara desde que deixara o pai, as irmãs e sua aldeia. Abraçada com força à filha, foi despejando ali toda a dor, toda a impotência e toda a mágoa que carregava consigo, num fardo tão pesado que ameaçava esmagá-la. Chorou até  sentir-se apaziguada e capaz de sorver todo o frescor daquela manhã e toda a ternura da dádiva de Onyinye. Era tempo de fazer o longo caminho de volta.